Cruzadas



Desde o fim do reinado de Justiniano (527-565)[1] o Império Bizantino, antigo Império Romano do Oriente[2], entrou em decadência. Diversas revoltas palacianas ocorriam com o objetivo de derrubar imperadores e instaurar novos soberanos apadrinhados pelo clero ou pelo exército. Entre os anos de 1025 e 1118, o Império teve 15 soberanos diferentes. O exército era fraco e a frota militar havia perdido o domínio do Mar Mediterrâneo para os venezianos e normandos que tinham se apoderado de territórios gregos na Itália.
Os muçulmanos[3], percebendo essa fraqueza, começaram a se apoderar da parte asiática do Império. Nessa época os islâmicos eram governados pela dinastia dos turcos seljúcidas[4].
A maior derrota bizantina para as forças muçulmanas foi em 1071 na Batalha de Manzikert. Pouco a pouco o Império foi perdendo suas províncias asiáticas. O avanço islâmico parecia incontrolável. Quando a cidade de Nicéia caiu em mãos muçulmanas, o imperador bizantino Aleixo Comeno I (1081-1118), no trono bizantino desde 1081, não viu alternativa a não ser pedir ajuda aos cristãos católicos. Está cidade estava situada a 160 quilômetros de Constantinopla, Capital do Império, distância que seria equivalente a uma marcha de três dias a cavalo.
Em março de 1095, o imperador enviou delegados ao Papa Urbano II (1088-1099)[5] com o objetivo de angariar ajuda contra os “infiéis” islâmicos. Tal pedido “caiu como uma benção” nas mãos do Papa naquele momento.
A Europa vivia um período de crescimento demográfico favorecido pela abundância de recursos naturais, pela suavização do clima e pelo aprimoramento de técnicas e tecnologias no meio rural. Mas isso gerava um grande problema. Nobres que não eram filhos primogênitos acabavam tendo dificuldades para manter sua posição social, pois não havia propriedades a disposição de todos. Senhores feudais e cavaleiros entravam em conflitos disputando terras, que representavam o bem mais precioso durante o período medieval. Esse crescimento demográfico também gerava dificuldades para os camponeses, que acabavam sofrendo com a falta de terras para trabalhar. Em meio a essa convulsão social na Europa, a Igreja se sentia pressionada, pois os senhores feudais poderiam se voltar contra as propriedades do clero, em busca de riquezas e bens.
No dia 27 de novembro de 1095, o Papa Urbano II (1088-1099) fez um apelo a todos os reis e nobres da cristandade para que ajudassem os irmãos cristãos do Império Bizantino e que libertassem a Terra Santa e o Santo Sepulcro dos infiéis, que dominavam a região desde 638 d.C. Essas foram as palavras do Papa, convocando os europeus:


Ó, francos[6], vocês não são habilidosos cavaleiros? Dêem um passo à frente! Na palavra do santíssimo, seguirão e combaterão. E lutem contra a amaldiçoada raça que avilta a terra sagrada, Jerusalém, fértil acima de todas as outras. Glorifiquem suas peregrinações para o centro do mundo! Que os conhecedores da palavra entrem em Jerusalém portando o estandarte de Nosso Senhor e Salvador! (GOMES, 2005, p. 12).


            Além de incitar os nobres cavaleiros cristãos a partirem em luta contra os muçulmanos, o Papa oferecia a benção e salvação eterna a todos que “tomassem a cruz”[7]. Isso no imaginário do homem medieval era muito forte, uma vez que o medo da danação no inferno atormentava a todos. A única questão que se opunha ao fato dessa expedição militar era o da união da religiosidade com o homicídio. No entanto isso foi facilmente contornado pelos teóricos cristãos da época. Matar era considerado um pecado, mas matar um “infiel” em nome da fé, não, esse era o princípio defendido pela da doutrina cristã da época.
            Mas antes dos objetivos religiosos, a cruzada[8] também respondia aos interesses políticos da Igreja. A campanha de retomada da Terra Santa era uma forma de canalizar toda a atividade bélica e agressividade dos nobres cristãos para um inimigo em comum e externo a cristandade, evitando também que esses mesmo aristocratas ambicionassem as terras da Igreja. Além disso, membros da Igreja sofriam constantemente com a violência de grupos de cavaleiros que profanavam templos religiosos e agrediam clérigos.
            Já para esses nobres, a cruzada representava uma forma de conquistar novas terras, riquezas lendárias e ter aventuras épicas, própria do imaginário da educação heróica de um cavaleiro.
            Contudo, os cristãos mais motivados com a expedição militar foram os camponeses. Para essas pessoas mais humildes, as peregrinações para Jerusalém representavam uma forma de estar onde o profeta Jesus[9] e seus apóstolos estiveram, além é claro do perdão de todos os pecados terrenos, concedido pelo próprio Papa. Urbano II (1088-1099) não imaginava que seu apelo iria despertar tanto entusiasmo entre os camponeses, já que a convocação do Papa visava os nobres e cavaleiros, elite armada e equipada, a única que poderia ameaçar os bens da Igreja e que tinha condições de fazer frente à força bélica dos muçulmanos.
            Fora dos planos do Urbano II, mais de 20 mil camponeses partiram em direção a Terra Santa. Esse movimento ficou conhecido como “Cruzada popular”. Após saques a cidades no trajeto até o oriente e massacres de comunidades judaicas, essa cruzada acabou sendo aniquilada pelos turcos em 21 de outubro de 1096, perto de Nicéia.
            Somente em dezembro deste mesmo ano, os cruzados oficiais partiram da Europa. O exército de aproximadamente trinta e cinco mil homens possuía quatro líderes: Godofredo de Bouillon, duque da Baixa Lorena; Boemundo, príncipe normando de Taranto; Raimundo, conde de Toulouse e St. Guilles e Roberto da Normandia, filho de Guilherme, o Conquistador.
            Os cruzados derrotaram as forças muçulmanas inicialmente em Nicéia, no ano de 1097, devolvendo essa cidade ao domínio bizantino, posteriormente os exércitos sitiaram Antioquia (Ilustração 1). O cerco durou de outubro de 1097 até julho de 1098. Com a vitória dos cristãos, a região acabou se tornando um principado governado por Boemundo de Taranto, o que demonstra que os nobres visavam conquistar terras na região da palestina.
            Os exércitos cristãos chegaram a Jerusalém em junho de 1099 e o ataque teve início em 13 de julho. No dia 15 deste mesmo mês já haviam tomado a cidade. Godofredo de Bouillon foi proclamado Rei do Reino de Jerusalém (Ilustração 1), mas alegando que não poderia ousar ser coroado onde Cristo usou uma coroa de espinhos, preferiu então usar o titulo de “Defensor do Santo Sepulcro”.
            Foram estabelecidas outras possessões cristãs no oriente: o Principado de Antioquia (Ilustração 1), sob o governo de Boemundo; o Condado de Trípoli (Ilustração 1), governado por Raimundo de St. Gilles e o Condado de Edessa (Ilustração 1), sob Balduíno de Boulogne, irmão de Godofredo de Bouillon. Não se pode negar todo o arcabouço religioso por trás desta cruzada, mas essa divisão das terras da palestina demonstra que o interesse dos nobres em relação ao movimento cruzadista era o de conquistar novas terras. O papa Urbano II morreu duas semanas após a conquista da cidade sagrada, mas não a tempo de receber a notícia da vitória.



ILUSTRAÇÃO 1 – Mapa dos Reinos cristãos na Terra Santa.
Fonte: Read (2001, p. 99).


            As atividades militares na palestina continuaram até 1109. Trípoli, a última possessão a ser conquistada pelos cristãos na Terra Santa, foi tomada após um longo cerco, que durou de 1102 até 1109.
            Uma vez tomado o principal alvo das campanhas bélicas na região, Jerusalém, a maioria dos soldados e cavaleiros cristãos retornaram para seus lares na Europa no inverno de 1100, deixando nobres e peregrinos na Terra Santa em difícil situação. O Reino de Jerusalém, sob o governo de Godofredo de Bouillon, contava com cerca de trezentos cavaleiros e mil soldados de infantaria, para a defesa de um grande território. A escassez de potencial humano ainda era mais grave. Haviam áreas da cidade sagrada que não possuíam habitantes, sendo locais preferidos para as atividades de ladrões.
            Godofredo faleceu em 1100 e, na falta de descendentes, o governo do Reino de Jerusalém foi passado para seu irmão Balduíno, então Conde de Edessa, que foi coroado no natal de 1100, com o nome de Balduíno I. Esse Rei implementou uma política de colonização e proteção de seu reino, concedendo incentivos econômicos para importação de mercadorias, o que chamaria a atenção de comerciantes e diminuiria o preço dos alimentos além de melhorar as defesas da cidade de Jerusalém.
            Mas mesmo com toda essa política do monarca, os estados cristãos na palestina eram “ilhas em um mar muçulmano”. A principal atividade do Reino de Jerusalém era a peregrinação a locais sagrados, onde o profeta Jesus passou os momentos finais de sua vida. Os peregrinos eram os mais prejudicados com a falta de proteção, pois o caminho que seguia de Jafa[10], uma cidade portuária do reino no mediterrâneo, até Jerusalém, era de difícil passagem devido às montanhas e ao deserto. Também era altamente perigoso, em decorrência dos ataques de salteadores sarracenos e bandoleiros beduínos que viviam nas cavernas da região. A descrição de um peregrino nórdico chamado Saewulf, feita em 1102, ilustra os perigos do caminho:


Fomos de Jafa até a cidade de Jerusalém, uma viagem de dois dias por uma estrada montanhosa, cheia de pedras e muito perigosa, pois os sarracenos, sempre armando ciladas para os cristãos, ficam escondidos nos pontos ocos das montanhas e nas cavernas das rochas, vigiando noite e dia, sempre à espreita daqueles que podem atacar por estarem em grupo pequeno ou daqueles que por cansaço ficaram para trás em relação ao seu grupo. Em determinado momento, eles são vistos por toda a parte, e imediatamente desaparecem completamente. Qualquer pessoa que faça essa viagem pode ver isso. Ah, o número de corpos humanos que jazem, tanto na estrada quanto à beira desta, despedaçados por bestas selvagens [...] (BURMAN, 2007, p. 15).


            A falta de proteção era tão grave, que até mesmo Balduíno de Le Bourg, então Conde de Edessa após 1100 e primo de Balduíno I, homem que mais tarde se tornaria Rei de Jerusalém, foi seqüestrado dentro de suas terras enquanto caçava.
            O único fator que impedia a perda da Terra Santa era a falta de unidade entre as lideranças muçulmanas.
            Em 1118 morre Balduíno I. Como ele não possuía descendente, seu primo, Balduíno, Conde de Edessa, ascendeu ao trono real de Jerusalém, com o nome de Balduíno II.


[1] Considerado um dos maiores imperadores bizantinos. Em seu governo foram instauradas reformas no Corpo do Direito Civil, inspiradas no Direito Romano e ocorreram as anexações de regiões do norte da África e da Península Ibérica e Itálica, estabelecendo assim um domínio sobre o Mar Mediterrâneo (CAMINO, 198- p.30-31).
[2] O Império Romano foi dividido no ano 395 em duas partes: o Império Romano do Ocidente, com Capital em Roma e o Império Romano do Oriente, com Capital em Constantinopla (CAMINO, 198-, p. 29).
[3] São os fiéis do Islamismo, doutrina religiosa fundada no século VII d.C. por Maomé (570-632) na atual região do Oriente Médio (READ, 2001, p. 57).
[4] Essa dinastia é proveniente de tribos de saqueadores nômades provenientes da Ásia Central, que dominaram os territórios do Califado de Bagdá e adotaram o Islamismo como religião (READ, 2001, p. 77).
[5] Seu nome era Oddone de Lagery, um nobre francês que aos 28 anos escolheu seguir a vida religiosa. Em 1088 subiu ao posto de Pontífice com o nome de Urbano II. Seu pontificado terminou em 1099, ano da conquista de Jerusalém (FRALE, 2007, p. 14).
[6] Essa era a designação dada a todos os cristãos europeus (GOMES, 2005, p. 12).
[7] Um ritual simbólico na qual o voluntario que combatesse na cruzada recebia uma cruz de pano para costurar em seu uniforme de batalha (READ, 2001, p. 317).
[8] A preferência pelo uso do termo em singular e não em plural se dá devido ao fator da análise recair sobre a primeira expedição militar enviada a Terra Santa.
[9] Na mentalidade medieval evocava a imagem de um profeta que realizou milagres e pregou a brandura e a simplicidade na Palestina (READ, 2001, p. 30).
[10] Atual Tel Aviv (WASSERMAN, 2009, p. 45).

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